21 fevereiro, 2010

Matéria: O Fórum da Ibogaína de Boston – do xamanismo à ciência de vanguarda

especial para a Crônica da Guerra Contra as Drogas de Doug Greene, auxiliado por Kevin Franciotti

fonte : Stop the Drug War

Em um fim de semana frio e claro do Dia dos Presidentes, dezenas de profissionais do tratamento, fornecedores clandestinos, pacientes, pesquisadores e entusiastas enteogênicos se reuniram na Northeastern University de Boston para o Fórum da Ibogaína de Boston, a sessão de 2009 da conferência anual sobre a ibogaína, patrocinada pelo grupo Northeastern Students for Sensible Drug Policy (que também apresenta a Conferência Regional do SSDP Nordeste de 03 a 05 de abril), a National AIDS Brigade e a Cures Not Wars.




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mesa-redonda da conferência, Dana Beal na tribuna


A ibogaína é considerada o composto “ativo” na planta Tabernanthe iboga, consumida há séculos como curandeiro, professor e catalisador para cerimônias pela religião Bwiti, originária do que agora é a República do Gabão na região centro-oeste africana. Porém, a versátil planta continuou praticamente desconhecida no Ocidente, onde tem uma história muito diferente.

O pesquisador doutor Howard Lotsof, dependente de heroína e metadona, descobriu a ação antiviciadora da ibogaína em 1962. Quando recebeu uma cápsula de HCL puro de ibogaína de um amigo de confiança familiarizado com a química, Lotsof simplesmente procurava uma nova euforia. Ficou assombrado quando saiu desta difícil experiência 36 horas de abstinência de opiáceos depois para perceber que não sentia anseios físicos por opiáceos e, de uma maneira ainda mais impressionante, experimentara muito pouco dos sintomas físicos atormentadores que acompanham a síndrome de abstinência de opiáceos.

Embora outras pesquisas anteriores fossem levadas a cabo nos anos 1960, a aceitação conseqüente da ibogaína como agente antiviciador no Ocidente esteve relacionada à impressionante história pessoal de Lotsof. Ao deixar de consumir opiáceos, Lotsof se voltou com entusiasmo para a ibogaína e outros psicodélicos e administrou ensaios em meados dos anos 1960 antes de ser preso conforme a nova legislação antidroga federal que proibiu os psicodélicos no fim da década. Durante mais duas décadas, Lotsof e a ibogaína como tratamento para a dependência vagaram pelos ermos e a pesquisa dele foi apoiada por grupos como a Cures Not Wars.

Só em 1989 Lotsof fez contatos significativos com pesquisadores de renome, os quais realizaram suas próprias pesquisas pioneiras. Entre aquele momento e agora, graças aos trabalhos missionários de Lotsof e seus partidários, lentamente a ibogaína tem ficado cada vez mais interessante para os pesquisadores da dependência e outros.

Na manhã do Dia dos Namorados, os fãs da ibogaína se viram no cinema para assistirem a Facing the Habit [Diante do vício], um filme de 2007 que conta com usuários de heroína que são bem-sucedidos – ou fracassam – em se desfazerem do vício deles através de tratamentos com a ibogaína. A seguir, falou o militante da ibogaína de maior destaque, Dana Beal, o bigodudo co-fundador da Cures Not Wars e Yippie!, quem deixou os que estiveram presentes na conferência a par da última pesquisa acerca das propriedades antiviciadoras da ibogaína, inclusive sua capacidade de regenerar caminhos da dopamina no cérebro através da ativação do fator neurotrófico derivado de linhagem de célula glial (GNDF, na sigla em inglês) que realiza. Esta empolgante investigação teve sua própria mesa em um momento posterior do dia com Roman Paskulin, fundador e diretor do Open Mind Institute da Eslovênia e a Dr.ª Tracy Blevins.

Beal foi sucedido por uma mesa-redonda de provedores de tratamento com ibogaína que discutia os desafios especiais de segurança envolvidos no tratamento de várias dependências de drogas diferentes com os Drs. Anwar Jeewa e A.R. Gani do inovador centro de tratamento residencial Minds Alive em Durban na África do Sul, o Dr. Bruno Rasmussen, do Brasil e Rocky Caravelli, o provedor de longa data.

A seguir, aconteceu uma das apresentações mais interessantes da conferência, a de Justin Kirkland, vice-presidente de Vendas e Marketing da Obiter Research sobre os trabalhos da empresa para desenvolver métodos mais econômicos de sintetizar o 18-Metoxicoronaridina (18-MC), um análogo da ibogaína com menos efeitos colaterais e um potencial maior para tratar a dependência da metanfetamina e da nicotina. Os eventos do dia terminaram com o Dr. Carl Anderson do Hospital McLean, quem discutiu a ibogaína, as fases do sono e o REM fetal.

No domingo, começou com outro documentário sobre a ibogaína, o Rites of Passage da Holanda, seguido por uma apresentação de Arielle Torra do SSDP Northeastern sobre as experiências subjetivas dos pacientes tratados na clínica Healing Transitions Institute for Addiction da Dr.ª Deborah Mash em São Cristóvão.

A primeira mesa-redonda agendada do dia lidou com o consumo polêmico de ibogaína para outras indicações, inclusive hepatite C (HVC). Phillip Fiuty, ex-coordenador de Redução de Danos da Secretaria da Saúde do Novo México, e Rocky Caravelli confirmaram a existência de pacientes de HCV cujas doenças melhoraram e até dissiparam o vírus sem o tratamento com interferona. Caravelli também descreveu os efeitos positivos sobre a herpes, a esclerose múltipla e a asma. Jason Farrell, fundador e ex-diretor-executivo do Positive Health Project e atual diretor-geral da Harm Reduction Consulting Services, Inc., sugeriu um estudo colaborativo de clínicas na África do Sul, no México e no Brasil para rastrear as cargas virais de pacientes de HIV/HVC durante seis meses a um ano.

Na seqüência, Preston Peet, ex-redator e diretor da High Times e drugwar.com, fez um depoimento pessoal dramático sobre a eficácia da ibogaína no tratamento das dores crônicas ao cortar drasticamente a tolerância a opiáceos.

A mesa-redonda mais vivaz da conferência, que comparou a eficácia da ibogaína com outras modalidades de tratamento, aconteceu a seguir. Patrick Kroupa, hacker pioneiro e ativista de longa data cujos múltiplos papéis incluem Alto-Sacerdote da Sacrament of Transition, uma religião da iboga do leste europeu, a Dr.ª Deborah Mash, Peet e Lenny do grupo de apoio à ibogaína da Cidade de Nova Iorque e John H. Halpern, professor-adjunto de Psiquiatria de Harvard, compararam a eficácia da ibogaína com a de outros enteógenos que às vezes são administrados como modalidades de tratamento para a farmacodependência, sobretudo o consumo de peiote no possível tratamento do alcoolismo entre a população indígena dos EUA e o uso sacramental da uasca entre os integrantes estadunidenses das igrejas Santo Daime e UDV. Também discutiram a ibogaína em comparação com tratamentos mais convencionais, como a abstinência em 12 passos, reduções das doses de metadona, a buprenorfina e a desintoxicação ultra-rápida com opiáceos (UROD, na sigla em inglês). A UROD – a injeção direta de naltrexona, o antagonista opiáceo, sob sedação com benzodiazepina – foi denunciada por todos os debatedores por ser ineficaz e desumana.

A mesa-redonda a seguir, que comparou os efeitos antiviciadores da ibogaína com os de outros enteógenos, contou com Halpern e Jon Harrison, o principal pesquisador do estudo de resultados sobre a ibogaína da Multidisciplinary Association for Psychedelic Studies na Pangea Biomedics em Playas de Tijuana no México.

Este estudo de caso observacional está examinando as mudanças no consumo de drogas em 30 indivíduos que buscam o tratamento à base de ibogaína para a dependência e pretende recolher informações para avaliar se a terapia assistida por ibogaína ajuda pessoas dependentes dos opiáceos a parar de consumir opiáceos ou a praticar o consumo moderado depois da terapia. Dados de doze meses de acompanhamento dos partícipes do estudo estão sendo recolhidos para examinar se a terapia assistida por ibogaína facilita as melhorias na qualidade de vida resultantes em menos danos relacionados ao consumo crônico ou mal administrado de opiáceos. O estudo recebeu a aprovação do Conselho de Revisão Institucional do Instituto de Estudos Integrais da Califórnia e inscreveu 11 dos 30 sujeitos. Durante muitos meses, a MAPS não foi bem-sucedida na arrecadação de fundos para o estudo, mas recebeu sua primeira doação considerável na conferência e até o dia 02 de março levantara todos os fundos para isso.

Halpern, quem publicou parte da única pesquisa sobre o consumo de peiote da parte dos indígenas estadunidenses, surpreendeu a multidão com a revelação de que o Instituto Nacional sobre a Toxicomania constrangera tanto sua pesquisa de modo a não poder estudar diretamente os manifestos efeitos antiviciadores do peiote. Ele também não tinha nenhum dado sobre os efeitos antiviciadores mediados por receptores e atribuiu tudo isso ao “resplendor psicodélico”.

A programação do domingo acabou com Makky, Carl Ruck, professor de Estudos Clássicos na Universidade de Boston, e Beal discutindo as cenas xamanísticas da América do Sul em comparação com as da África, um possível papel da iboga na Antigüidade e os perigos dos fundamentalistas transgressores adeptos da abordagem “Os cogumelos e a cruz”, respectivamente.

O Dia dos Presidentes começou com um apanhado da cena internacional da ibogaína. As Dr.as Rosaria Dávalos e Zulema Medrano descreveram o grande progresso na promoção dos tratamentos com ibogaína, mas também os empecilhos devido à contínua deferência aos EUA. Os Drs. Jeewa e Gani deram detalhes sobre seu centro de tratamento residencial. Jason Chamon, um provedor de tratamento australiano, descreveu uma cena de tratamento menor e informal – clandestina na Austrália, legal na Nova Zelândia. De Loenen encerrou, fazendo uma aparição o vivo através do Skype para contrastar a conduta mais relaxada na Espanha e em Portugal com um fórum na Holanda acerca da arritmia em pacientes que consomem ibogaína.

Os ibogainistas internacionais foram seguidos por uma mesa-redonda sobre o papel da ibogaína na redução de danos com Jason Farrell, Phil Diuty e Doug Greene, co-fundador da Cures Not Wars e ativista veterano das políticas de drogas. Farrell ressaltou a necessidade de que os provedores de tratamento com ibogaína tomem cuidado com quem tratam para minimizarem os riscos ao aludir a um caso recente na Holanda em que um paciente se recusou a parar de consumir álcool antes de um tratamento e sofreu um ataque e daí dois dias de arritmia. Ao mesmo tempo, instou uma maior oferta do tratamento com ibogaína e aconselhou os possíveis provedores a conseguirem um espaço e catres e “fazê-lo e pronto”. Greene elogiou a ibogaína enquanto opção mais libertária para o tratamento da toxicomania e convocou o movimento pró-reforma das políticas de drogas para que centre seus trabalhos na maconha e na ibogaína.

A conferência encerrou suas atividades com uma mesa-redonda que contou com Jon Stuen-Parker da National AIDS Brigade discutindo sua ação contra o governo federal estadunidense por desatenção para com a pedra de cocaína e a heroína. Daí, Rick Doblin, fundador e presidente da MAPS, comunicou aos presentes diretrizes para que promovam a ibogaína para legisladores estaduais e federais, enquanto Dana Beal sugeriu uma carta dos congressistas ao futuro administrador da DEA do presidente Obama.

Foi a primeira conferência sobre a ibogaína transmitida ao vivo pela Internet, sendo que havia duas vezes mais pessoas conectadas do que presentes na sala. Embora tanto oradores quanto presentes ficaram frustrados com o ritmo desigual da conferência e a desconsideração total pelo que foi anunciado, a reação ao conteúdo da conferência foi positivo no geral. Jason Farrell disse: “Foi uma conferência muito impressionante que abriu meus olhos para o trabalho internacional sério que está sendo feito a respeito da ibogaína. É uma pena que a imprensa não cobriu isso como merecia”.

Valerie Vande Panne, estudante de Harvard e ativista pró-reforma das políticas de drogas de longa data, disse: “É bom ver que a ibogaína recebe a pesquisa e o reconhecimento do que merece. Está claro que tem sido benéfica de modo holístico, decente e humano para as vidas de muitos que se consideravam dependentes e estavam prontos para uma mudança em suas vidas”.

Rick Doblin disse: “Muitos dos oradores ficaram fascinados e tinham um monte de experiência e informação importante a compartilhar. O futuro da ibogaína é brilhante. As clínicas se dirigem a um modelo médico mais visível e responsável e percebem a importância de programas de cuidados posteriores. Não tenho certeza de onde viriam os recursos para os estudos clínicos a fim de legalizar a ibogaína nos EUA – pode ser que seja demais para o NIDA, até mesmo no governo Obama. Embora não espere um desenvolvimento comercial das drogas a curto prazo nos EUA ou em outros lugares, haverá uma pesquisa mais prospectiva nas clínicas que, com o tempo, consolidarão o apoio para mais estudos clínicos”.

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