16 novembro, 2010

Pode uma sonoridade funcionar como droga?

Chamam-lhes e-drugs ou drogas digitais. São sons binaurais. Custam entre sete e 150 euros em sites especializados.

Por Ana Cristina Pereira

Escolher ficheiro, pôr auscultadores, accionar. Ouve-se um som diferente em cada lado. Aqueles ruídos comercializam-se na Internet como e-drugs - drogas digitais. Têm nomes sugestivos: Orgasm, Peyote, Marijuana, Cocaine, Opium... Há quem lhes atribua sensações de relaxamento, euforia, transe. Mas pode o som estimular o cérebro ao ponto de causar um efeito semelhante ao de drogas como a cannabis, o ópio, a cocaína ou o LSD?

Abundam descrições em sites da especialidade, como o i-doser. Nome de código "Sweet Lemon" escreveu: "Rebenta com a minha cabeça, não a expande apenas. Acabei agora de experimentar o Peyote e foi esquisito. Finalmente, parei de pensar no que ia acontecer enquanto ouvia [aquela música] e bum. Bateu. Reparei como a linha onde a parede e o tecto se tocam era engraçada. Parei de focar e vi sangue roxo a escorrer pelo canto da minha visão periférica. Olhei para trás e desapareceu e vi a outra parede tornar-se roxa e, depois, as luzes tinham chamas roxas a atravessar o tecto. Vinte minutos de loucura. Experimenta!"

No mesmo fórum sobre os eventuais efeitos das e-drugs, estusiásticas opiniões como aquela convivem com opiniões reticentes ou cépticas. Como esta, nome de código "Kurwik": "Experimentei o Peyote três vezes e nada aconteceu. Senti apenas um pouco de medo. Fora disso, nada. Total perda de dinheiro. Vou tentar algum Ecstasy e Excite. Se não funcionar, adeus, caixote do lixo."

A moda está a apanhar adolescentes em muitos pontos do planeta, à boleia das redes sociais. Encontrámos Nick Ashton, fundador do i-doser, numa delas - no Facebook. Por e-mail, em respostas muitíssimo curtas, o jovem norte-americano assegurou que, desde que foi activada, em 2005, a página foi visitada "por milhões". "A nossa aplicação foi descarregada 1,5 milhões de vezes."

Rituais de iniciação

O fenómeno é novo, mas o princípio não é, adverte Maria do Carmo Carvalho, autora de Culturas Juvenis e Novos Usos de Drogas em Meio Festivo (Campo das Letras, 2007): "Sonoridades em frequências muito baixas, durante um longo período, com cadências muito repetitivas, são usadas ancestralmente para induzir estados alterados de consciência."

A investigadora da Universidade Católica Portuguesa fala em "tribos africanas, que produzem modos de realização da cura associados à espiritualidade". Cita um artigo de Uwe Maas e Suster Strubelt sobre o uso de música nos rituais de iniciação no Gabão: "A música é usada por culturas tradicionais em todo o mundo para criar e acompanhar estados de transe". Analisaram as composições e a sua funcionalidade e escreveram: "Supomos que a música potencia o efeito da droga ibogaína que é usada durante o ritual de iniciação".

Não é preciso ir a África. Basta pensar no transe em que entram alguns crentes durante cerimónias de certas seitas. Sem drogas. "Esses estados de transe acontecem com pessoas que estão predispostas a isso e que têm uma certa susceptibilidade", explica o neurologista João Massano.

"Sweet Lemon" pode estar a dizer a verdade e "Kurwik" pode estar a dizer a verdade também? "Há pessoas que têm uma capacidade invulgar de ouvir determinados sons ou de ver determinadas cores ou formas", torna o investigador da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. "Chamam-se sinestesias. Mas são alucinações muito simples, nada comparáveis às provocadas por drogas químicas."

O neurologista traz à conversa o efeito placebo. O método é muito usado na investigação científica: para se distinguir os efeitos de um fármaco da cura por sugestão, um grupo toma um princípio activo, outro um placebo. "Às vezes, há melhores resultados no grupo do placebo."

Pedimos a um músico para experimentar. Deitado, no escuro, com auscultadores, experimentou o simulador de óxido nitroso. Nada. Experimentou um simulador de "substâncias que se encontram na pele de algumas espécies de sapos". Apesar de mais relaxado, tornou a nada sentir. "Tinha uma série de pensamentos a correr pela cabeça, mas, ao fim e ao cabo, não era muito diferente de quando estou prestes a adormecer." Não desistiu. Experimentou um simulador de LSD. Nada. Experimentou um relaxante. "Era extremamente irritante." Desistiu.

"Não fiz a experiência desconfiado. Estava mesmo com esperança que funcionasse, apesar de duvidar muito de algumas das descrições dos produtos", comenta. Faz uma ressalva. Lembra que só usou downloads ilegais. "Sabe-se lá se este material está corrompido."

"Para alguém sentir os efeitos de uma droga, tem de haver quem lhe explique. Senão, a pessoa que está a experimentar não sabe ler o que está a sentir", sublinha Maria do Carmo Carvalho. E os vendedores de e-drugs sabem-no. Uma curta busca ao YouTube conduz a múltiplos vídeos, algumas com centenas de milhares de pageviews. Há os que ensinam a usar; os que mostram miúdos, de auscultadores, a "consumir"; por baixo, o inevitável debate.

"Acho que temos de ter alguma frieza em analisar isto", adverte João Massano. "Não sei quantos destes relatos [arrebatados] são fabricados. Estive a ver se há testes científicos que comprovem os efeitos e não os encontrei - não há. Nunca grupos independentes fizeram testes científicos a isto. Analisei diversas situações. Numa delas, especifica-se as frequências dos sons utilizados para produzir um efeito. Algumas das frequências referidas não são audíveis pelo ser humano. Isso levou-me a pensar que isto é só um negócio."

"Quantos dos testemunhos serão estratégia de marketing?", questiona o neurologista. Alguém está a ganhar dinheiro com a venda destes sons binaurais. Os preços dos ficheiros oscilam entre sete e 150 euros. Podem descarregar-se alguns de graça. E não falta quem saiba como descarregar alguns ilegalmente.

Parece tudo muito profissional nos sites que vendem sessões de 15 a 30 minutos. Nick Ashton, por exemplo, diz que estiveram "cinco anos" a pesquisar. No site, refere-se que grande parte do tempo foi gasto em testes. Para Nick Ashton, isto é só uma forma "legal" e "sem efeitos secundários" de "simular um estado de espírito ou uma experiência". E isso, para Maria do Carmo Carvalho, é "interessante". Nos contextos festivos juvenis, como o das raves, "a experiência é global". Há os lugares, as músicas, os pares, as drogas. Aqui, a função exclusiva da experiência é alterar a consciência: "Há uma intencionalidade, mas também uma busca de uma estratégia sem riscos".

iPods banidos

Há quem não veja o fenómeno de forma inócua. O Grupo de Narcóticos de Oklahoma já fez saber que teme que este fenómeno leve os adolescentes à experimentação de "outras" drogas. "Os miúdos podem ir a estes sites ver o que se passa e isso pode levá-los a outros sítios", declarou, em jeito de alerta, o porta-voz, Mark Woodward, à News 9, citada pela revista Wired. Uma escola pública da zona está a levar a suposta ameaça tão a sério que mandou uma carta aos pais. Os educadores foram o mais longe que puderam: decidiram banir os iPods da escola. Maria do Carmo Carvalho contesta raciocínios como este. Há muito que se sabe que a teoria da escalada "é um mito".

Os relatos de medos propagam-se, alimentados por pais pouco ou nada familiarizados com as potencialidades da Internet. Já há até quem mencione o eventual risco de disfunções cerebrais. E isso, a João Massano, parece "ficção científica": "Não vejo que isto possa provocar algum efeito neurológico nocivo. Não vejo efeitos secundários, a não ser os muito conhecidos de ouvir música muito alto. Quanto muito, podem queixar-se de fraude."

Notícia corrigida às 13h45, dia 14/11/2010

Fonte : Publico.pt

Nenhum comentário:

Postar um comentário