A imprensa quis levantar poeira com a foto de Ronaldo Fenômeno fumando dentro de sua casa, na festa que deu para Anderson Silva, lutador do MMA. Ronaldo queixou-se: "Sempre respeitei os fotógrafos e sempre tentei ajudar, só que dessa vez passaram do limite!" E ameaçou processar o fotógrafo. Veja escreveu que Ronaldo fuma desde os tempos do Real Madrid, cerca de dois maços de Marlboro por dia.
É claro que o cigarro não arranhou a imagem do ídolo. Da mesma forma que Ronaldo nunca foi julgado pelo contrato que mantém com a AmBev há mais de dezessete anos, renovado no ano passado até 2020. A imprensa faz estardalhaço porque Ronaldo fuma e não diz nada quando ele promove a venda de cerveja, incitando milhões de jovens a beberem, apesar dos nossos problemas gravíssimos de alcoolismo e de já ocuparmos o primeiro lugar mundial no consumo de álcool.
Somos um país de ética pervertida, de moral frouxa e elástica. Um deputado norte-americano demitiu-se da função, porque mostrou o corpo atlético na internet. Envergonhou-se do que considerou um despudor. No Brasil, ninguém deu a mínima para a nebulosa história de Ronaldo com os três travestis, para as acusações de uso de cocaína e prática de sexo sem preservativo. O Fenômeno queixou-se chorando: "Minha carreira acabou." Acabou nada.
Ronaldo renovou todos os contratos milionários que fazem dele o dono de uma fortuna de um bilhão de reais. Além dos milhões anuais recebidos da Nike, Claro, Vale e Hypermarcas, ele embolsa 2,5 milhões de dólares por ano da AmBev, para aliciar as pessoas a beberem cerveja. Sempre me escandalizava quando o ídolo, muito jovem ainda, levantava um dedo para cima após um gol, marca publicitária da cerveja Brahma, a número 1.
A torcida brasileira estava se lixando para o tabagismo de Ronaldo. Ela queria saber apenas se ele fazia gols, se levava o time para a final dos campeonatos e trazia a vitória. A obesidade de Ronaldo preocupava apenas porque ele não rendia em campo. Mas, se ele chegasse à marca dos 34 gols em 47 jogos, que alcançou no Internazionale de Milão, poderia pesar duzentos quilos. Ninguém se importa que Ronaldo influencie os jovens a beber. Todos acham bacana ele ganhar os anuais dois milhões e meios da AmBev. No Brasil, herói é quem se dá bem e ganha muito dinheiro a qualquer preço. Basta ver a moral do Big Brother.
Devastaram a carreira do nadador norte-americano Michael Phelps, que ganhou oito medalhas de ouro nos Jogos Olímpicos de Pequim, depois que o flagraram fumando maconha. Seus assessores não conseguiram negociar com o tablóide que a foto não fosse publicada e o caso abafado. É verdade que maconha é uma droga ilícita. O álcool, responsável por acidentes de trânsito, transtornos de comportamento e violência, é lícito e pode-se até fazer propaganda dele, incitando os jovens a beber.
O jogador Edmundo Animal envolveu-se em acidente de carro com vítimas e estava bêbado. Deputados envolvem-se em acidentes de carro com vítimas, estando bêbados. E o que acontece? Nada. A justiça continua cega? Que mal o tabagismo de Ronaldo faz às pessoas, se ele não fuma em lugares públicos e faz questão de não ser visto fumando?
O tabagismo de Ronaldo só faz mal a ele mesmo e aos fumantes passivos que estiverem por perto. Ronaldo atenta contra a própria saude, escolhendo morrer com câncer de pulmão, próstata, bexiga, língua e outros. É um livre arbítrio. Nenhum fumante sofre acessos de violência, comete acidentes de trânsito, mata ou morre por fumar tabaco. Todo o estardalhaço contra a indústria do fumo é justo. E contra o álcool, mil vezes mais preocupante para a segurança e a saude pública, não se faz nada?
Condena-se Ronaldo por fumar, mas ninguém o critica por induzir as pessoas ao alcoolismo. A torcida do Corinthians pichou paredes, depredou carros, jogou pedras no ônibus do time porque ficou fora da Libertadores. Os milhares de brasileiros vítimas de bêbados não jogaram uma única pedra em Ronaldo, nem escreveram um único abaixo assinado pedindo que ele pare de incitar as pessoas ao alcoolismo.
E Ronaldo sobrevive, espertamente, como bem escreveu Shakespeare na comédia Muito barulho por coisa nenhuma: "Pensais que me importam uma sátira ou um epigrama? Não, se um homem se deixa abater pelo que os outros pensam, nada de proveitoso conseguirá para si."
Autor: Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor. Escreveu Faca, Livro dos Homens e Galiléia.
Fonte: Terra Magazine
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